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Alberto Rodrigues
(18.12.1910 - 28.03.1995)
Boa disposição e confiança no futuro, amizade, apego à verdade, trabalho, honestidade e "fair play" no desporto e na vida, eram o seu cartão de visita.
Foto aos 24 anos de idade
Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.
Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.
Dá o sopro, a aragem - ou desgraça ou ânsia -,
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distância -
Do mar ou outra, mas que seja nossa!
in Mensagem, Segunda Parte / Mar Português
Do árabe al-qanTarâ significa «ponte,viaduto,aqueduto», conforme José Pedro Machado ( in Vocabulário Português de Origem Árabe).
Em Lisboa é nome de ribeira, largo, rua, travessa, e bairro.
Hoje a paisagem de Lisboa, junto a Alcântara, é marcada pela imagem da
Ponte 25 de Abril, e pelo seu antigo Aqueduto das Águas Livres.
Em Alcântara, existem também diversos viadutos e pontes que facilitam a circulação de meios de transporte e pessoas.
Ontem, 26 de Março de 2006, realizaram-se duas provas desportivas, a
Meia e a Mini-Maratona, com partida no início do tabuleiro da Ponte 25
de Abril, na margem sul do rio Tejo, e final em Belém junto ao Mosteiro
dos Jerónimos, as quais atravessaram Alcântara.
O escriba de serviço foi nesta ocasião também atleta e fotógrafo, tendo feito a Mini-maratona a
passo a maior parte do tempo, mas sem ir por atalhos ( como certos marotos ).
Pela primeira vez neste espaço junto imagens, precisamente
da passagem por Alcântara:
Descida da Ponte 25 de Abril
Aproximação ao Viaduto e Estação da CP de Alcântara
Cíclades
(evocando
Fernando Pessoa)
A
claridade frontal do lugar impõe-me a tua presença
O teu nome emerge como se
aqui
O
negativo que foste de ti se revelasse
Viveste
no avesso
Viajante incessante do inverso
Isento de ti próprio
Viúvo de ti próprio
Em Lisboa cenário da vida
E eras o inquilino de um quarto alugado
[por cima de uma leitaria
O empregado competente de uma casa comercial
O frequentador irónico delicado e cortês
[dos cafés da Baixa
O visionário discreto dos cafés virados para o Tejo
(Onde
ainda no mármore das mesas
Buscamos o rastro frio das tuas mãos
- O imperceptível dedilhar das tuas mãos)
Esquartejado pelas fúrias do não-vivido
À margem de ti dos outros e da vida
Mantiveste em dia os teus cadernos todos
Com
meticulosa exactidão desenhaste os mapas
Das múltiplas navegações da tua ausência
–
Aquilo que não foi nem foste ficou dito
Como ilha surgida a barlavento
Com
prumos sondas astrolábios bússolas
Procedeste ao levantamento do desterro
Nasceste depois
E alguém gastara em si toda a verdade
O caminho da Índia já fora descoberto
Dos deuses só restava
O incerto perpassar
No murmúrio e no cheiro das paisagens
E
tinhas muitos
rostos
Para
que não sendo ninguém dissesses
tudo
Viajavas no avesso no inverso no
adverso
Porém obstinada eu invoco - ó dividido -
O instante que te unisse
E celebro a tua chegada às ilhas onde jamais vieste
Estes
são os arquipélagos que
derivam
[ao longo do teu rosto
Estes são os rápidos golfinhos da tua alegria
Que os
deuses não te deram nem quiseste
Este é o país onde a carne das estátuas
[como choupos estremece
Atravessada pelo respirar leve da luz
Aqui brilha o azul-respiração das coisas
Nas praias onde há um espelho voltado para o mar
Aqui
o enigma que me interroga desde sempre
É
mais nu e veemente e por isso te invoco:
«Porque foram quebrados os teus
gestos?
Quem
te cercou de muros e de abismos?
Quem derramou no chão os teus segredos?»
Invoco-te como se chegasses neste barco
E poisasses os teus pés nas ilhas
E a
sua excessiva proximidade te invadisse
Como um rosto amado debruçado sobre ti
N o estio deste lugar chamo por ti
Que hibernaste a própria vida como o animal
[na estação adversa
Que te quiseste distante como quem ante o quadro
[pra melhor ver recua
E quiseste a distância que sofreste
Chamo por ti - reúno os destroços as ruínas
[os pedaços
Porque o mundo estalou como pedreira
E no chão rolam capitéis e braços
Colunas divididas estilhaços
E da ânfora resta o espalhamento de cacos
Perante os quais os deuses se tornam estrangeiros
Porém aqui as deusas cor de trigo
Erguem a longa harpa dos seus dedos
E encantam o sol azul onde te invoco
Onde invoco a palavra impessoal da tua ausência
Pudesse o instante da festa romper o teu luto
Ó viúvo de ti mesmo
E que ser e estar coincidissem
No um da boda
Como
se o teu navio te esperasse em Thasos
Como se Penélope
Nos
seus quartos altos
Entre
seus cabelos te fiasse
" Zotov continuava a ouvir a conversa dos outros: não contavam as coisas como se tinham
passado, não haviam compreendido bem. Não soube resistir e levantou-se para ir
explicar. Abriu a porta, parou à entrada e olhou todos, um após outro, fixando-os
nos olhos.
À direita, em frente
da mesa, a pequena Valia trabalhava nas listas e nos gráficos de papel de
várias cores.
Encostado
à janela, coberta também por uma cortina de papel azul, estava um banco
vermelho sobre o qual se sentava Frosia, já não jovem, forte, com o ar
impetuoso e viril das mulheres russas habituadas a trabalhar de sol a sol. O impermeável
de encerado cinzento-verde, que usava quando estava de serviço, encharcado
pela chuva, estava pendurado na parede, todo amarrotado, e ela, com as botas
molhadas e um usado casaco negro, afinava o candeeiro de petróleo, que havia
retirado na lanterna quadrangular.
Na porta estava colado
um daqueles cartazes cor-de-rosa que se viam por toda a parte em Kretchotovka:
«Evitai o tifo vermelho!» O papel do cartaz era de um cor-de-rosa carregado, doentio, tal como a exantema de um tifoso ou como as carcaças de
ferro queimado dos vagões atingidos pelo bombardeamento.
Perto
da porta, para não sujar o soalho, o velho Kordubailo estava sentado no chão,
um pouco voltado para a estufa e encostado à parede. Tinha ao seu lado uma velha bolsa de pele com
ferramentas pesadas, colocada de modo a não impedir a passagem, e um par de
luvas impregnadas de nafta. O velho, via-se, sentara-se assim que entrara sem
sacudir a chuva e sem se despir: botas e impermeável tinham formado pequenas
poças sobre o pavimento. Por terra, entre as pernas encolhidas, tinha uma
lanterna apagada, como a da Tia Frosia. Sob o impermeável o velho envergava uma
túnica negra, bastante suja, amarrada na cintura por uma cinta de fazenda
castanha e encardida. Havia atirado para trás o capuz: na cabeça, ainda coberta
por longas madeixas, trazia, bem enterrado, um velhíssimo boné de ferroviário.
A pala cobria-lhe os olhos, a luz da lâmpada iluminava apenas o nariz lívido e
os grossos lábios com que Kordubailo humedecia o cigarro, feito com papel de
jornal, que estava a fumar. A sua barba eriçada conservava ainda alguns fios
negros.
-
E que
outra coisa podia fazer? - dizia Valia, tamborilando com o lápis sobre a mesa. -
Estava de guarda, era uma sentinela!
-
Sim, é justo - anuiu o velho, deixando cair no chão e sobre a tampa da lanterna a cinza do cigarro. É justo...
Todos querem comer.
- Porque dizes isso? - irritou-se a rapariga.
- Todos, quem?
- Tu e eu, e os outros – suspirou o velho.
-
És mesmo tonto, avô! Talvez estivessem com fome? Não lhes dão as rações
regulamentares? Que pensas? Que os fazem viajar sem comer?
- Sim, é justo - concordou o velho, e do seu cigarro caiu mais cinza em brasa, desta vez
sobre um joelho e sobre a bainha da túnica.
- Tem cuidado, Gavrila
Nikititch, acabas por te queimar! - avisou a Tia Frosia.
O velho olhou com
indiferença, sem sacudi-las, as pequenas brasas que se apagavam sobre as suas
calças acolchoadas, escuras e encharcadas. Depois, levantou um pouco a cabeça
de cabelos grisalhos sob o barrete.
- Vocês, raparigas, já
comeram por acaso farinha molhada, diluída em água?
- Porquê molhada? -
admirou-se a Tia Frosia. - Quando está diluída na água ponho-a a cozer no
forno.
O velho contraiu os
grossos lábios pálidos e disse, após um momento - as palavras demoravam a sair-lhe da boca, como se
caminhassem de muletas levando muito tempo a chegar de onde tinham nascido:
-
Então não sabem o que é fome, minhas
caras.
O tenente Zotov entrou na sala e interveio:
- Ouve,
avô, sabes o que é um juramento, não?
Todos perceberam a irritação de Zotov.
O avô voltou para o tenente os seus olhos
turvos. Era de pequena estatura, mas eram grandes e pesadas as suas botas
encharcadas e, aqui e ali, estavam manchadas de barro.
- Claro - resmungou. - Eu
próprio jurei cinco vezes.
- Bem, e a quem
prestaste juramento? Ao czar Nicolau?
O velho abanou a cabeça.
- Antes desse.
- Como? A
Alexandre III?
O velho franziu os lábios com ar consternado e
continuou a fumar.
- Ah! Mas agora presta-se
juramento ao povo. É um pouco diferente, não é?
O velho deixou cair mais cinza sobre o joelho.
-
E a farinha de quem é? Não é do povo? - disse Valia
com calor, atirando para trás os cabelos que lhe caíam alegremente sobre a fronte. - Para quem a
transportavam, a farinha? Para os alemães, talvez?
-
Sim, é justo - concordou o velho. - Mas aqueles rapazes não eram alemães,
também eram do nosso povo.
Dobrou
em duas a ponta do cigarro que tinha acabado de fumar e esmagou-a contra a
parte superior da lanterna.
-
Que velho cabeçudo! - exclamou
Zotov. - Fazes alguma ideia do que seja a legalidade? Que aconteceria se cada um
roubasse o que lhe apetecesse, eu roubo, tu roubas... Venceríamos a guerra?
- E porque rasgaram os sacos?
- saltou Valia, indignada. - Que maneiras eram aquelas?
Aquilo é de gente nossa?
Vê-se
que estavam com fome observou Kordubailo limpando o nariz com a mão.
-
E portam-se daquela maneira? Espalhando a farinha por toda a parte? Sobre as
linhas?-protestou a Tia Frosia.- A farinha dos
sacos que rasgaram ficou toda espalhada, camarada tenente! Quantas crianças
podiam ter sido alimentadas !
- Sim, é justo - disse o velho.
Mas com esta chuva também o resto deve ter ficado ensopado nos vagões descobertos.
- Não serve de nada falar com ele! - exclamou Zotov irritado, mais consigo próprio
do que com o velho, por se ter imiscuído numa conversa inútil. – Não façam tanto barulho! Não posso trabalhar!
A
Tia Frosia, que acabara de limpar a lanterna, fez lume e acendeu-a. Depois levantou-se
e agarrou no seu impermeável endurecido e amarrotado.
- Vamos, Valia,
afia-me o lápis. Vou tomar nota dos números do setecentos e sessenta e cinco.
Zotov voltou ao seu gabinete. "
Extraído do conto Na Estação de Kretchetovka, in a Casa de Matriona, Biblioteca ARCÁDIA de Bolso nº 26, Editora ARCÁDIA Limitada, 1964, pp.102-107.