por Tó Zé Rodrigues, em 02.12.06
O multiculturalismo encerra uma verdade importante, que o individualismo liberal tende a esquecer: há nas pessoas uma dimensão colectiva. A minha identidade é, em parte, constituída pela sociedade e pela cultura onde nasci. Se não fosse português, já não seria eu.
Por isso, respeitar a identidade e até a autonomia de uma pessoa implica não lhe arrancar à força a sua cultura comunitária. Tal violência significaria obrigá-la a ser outra pessoa, acção profundamente antiliberal.
A liberdade cultural é, assim, inerente a uma sociedade pluralista livre. Mas essa liberdade não significa apenas tolerância face às várias maneiras de viver e de pensar que existem nas nossas sociedades cada vez mais multiculturais. Implica, também, que cada pessoa seja livre de seguir ou de abandonar a cultura tradicional da sua comunidade.
Este ponto tem vindo a ser levantado por Amartya Sen . Ele sublinha que não se pode confundir liberdade cultural com conservadorismo cultural. E não é preciso puxar muito pela imaginação para ver que pode existir um conflito entre a liberdade individual (a livre escolha por parte de cada um) e a liberdade comunitária (a possibilidade de uma minoria manter a sua cultura repressiva da autonomia pessoal). Ignorar tal conflito é meter a cabeça na areia.
Não é admissível que certas comunidades obriguem os seus elementos a seguir todos os preceitos e regras tradicionais da sua cultura de origem, em particular na esfera religiosa. As pessoas - todas as pessoas - devem ser livres de escolher se querem manter-se nas tradições onde nasceram ou se aderem a outros valores e outras concepções de vida.
Ora dar um tal valor à liberdade pessoal é próprio da cultura ocidental e não se encontra - pelo menos com a mesma força - noutras culturas. Preservar a liberdade de escolha de pessoas inseridas em algumas comunidades tradicionais representa ir contra a cultura dessas comunidades. Ou seja, o multiculturalismo jamais pode ser absoluto. Tem limites.
É perigosa a ilusão liberal de que o Estado e a sociedade podem ser totalmente neutros em relaE não apenas este limite. Há costumes e tradições em algumas culturas que, por muito que as respeitemos, não podemos aceitar. Por exemplo, a eliminação de recém-nascidos com deficiências físicas. Ou a excisão genital feminina.
É perigosa a ilusão liberal de que o Estado e a sociedade podem ser totalmente neutros em relação às várias concepções de vida. Não podem. E, de facto, nunca o são.
Mas, se tivermos em conta esses limites, a sociedade e o Estado liberais representam, sem dúvida, um enorme progresso de civilização, que importa preservar no presente quadro multicultural.
(...) “
Franscisco Sarsfield Cabral, Jornalista
In ”Tradição cultural e liberdade pessoal”,
Diário de Notícias, 2-12-2006
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