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"Era verdade. Durante uns dias o cão [ Kurika] não falou. Digo bem: não falou. A fala é muito complicada. Está antes da palavra, como a poesia. E aquele cão falava. Falava com os seus vários modos de silêncio, falava com os olhos, falava, até, com o rabo, falava com o andar, com as inclinações da cabeça, com o levantar ou baixar das orelhas. Daquela vez calou-se por completo. Não falou com nenhum dos seus sinais. Nem sequer com o seu silêncio."
Manuel Alegre, in "Cão Como Nós",
Publicações Dom Quixote, Janeiro de 2008, 16ª edição, pág.s 119.
Obs.: Kurika estava zangado pois pensava que o tinham abandonado.
Tó Zé
Tudo que faço ou medito
Fica sempre na metade,
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.
Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faço!
Minha alma é lúcida e rica,
E eu sou um mar de sargaço-
Um mar onde bóiam lentos
Fragmentos de um mar de além...
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.
Fernando Pessoa
in Cancioneiro, Obra Poética de Fernando Pessoa,
I Volume, Circulo de Leitores,1986,pg.250
Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.
Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.
Dá o sopro, a aragem - ou desgraça ou ânsia -,
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distância -
Do mar ou outra, mas que seja nossa!
in Mensagem, Segunda Parte / Mar Português
Cíclades
(evocando
Fernando Pessoa)
A
claridade frontal do lugar impõe-me a tua presença
O teu nome emerge como se
aqui
O
negativo que foste de ti se revelasse
Viveste
no avesso
Viajante incessante do inverso
Isento de ti próprio
Viúvo de ti próprio
Em Lisboa cenário da vida
E eras o inquilino de um quarto alugado
[por cima de uma leitaria
O empregado competente de uma casa comercial
O frequentador irónico delicado e cortês
[dos cafés da Baixa
O visionário discreto dos cafés virados para o Tejo
(Onde
ainda no mármore das mesas
Buscamos o rastro frio das tuas mãos
- O imperceptível dedilhar das tuas mãos)
Esquartejado pelas fúrias do não-vivido
À margem de ti dos outros e da vida
Mantiveste em dia os teus cadernos todos
Com
meticulosa exactidão desenhaste os mapas
Das múltiplas navegações da tua ausência
–
Aquilo que não foi nem foste ficou dito
Como ilha surgida a barlavento
Com
prumos sondas astrolábios bússolas
Procedeste ao levantamento do desterro
Nasceste depois
E alguém gastara em si toda a verdade
O caminho da Índia já fora descoberto
Dos deuses só restava
O incerto perpassar
No murmúrio e no cheiro das paisagens
E
tinhas muitos
rostos
Para
que não sendo ninguém dissesses
tudo
Viajavas no avesso no inverso no
adverso
Porém obstinada eu invoco - ó dividido -
O instante que te unisse
E celebro a tua chegada às ilhas onde jamais vieste
Estes
são os arquipélagos que
derivam
[ao longo do teu rosto
Estes são os rápidos golfinhos da tua alegria
Que os
deuses não te deram nem quiseste
Este é o país onde a carne das estátuas
[como choupos estremece
Atravessada pelo respirar leve da luz
Aqui brilha o azul-respiração das coisas
Nas praias onde há um espelho voltado para o mar
Aqui
o enigma que me interroga desde sempre
É
mais nu e veemente e por isso te invoco:
«Porque foram quebrados os teus
gestos?
Quem
te cercou de muros e de abismos?
Quem derramou no chão os teus segredos?»
Invoco-te como se chegasses neste barco
E poisasses os teus pés nas ilhas
E a
sua excessiva proximidade te invadisse
Como um rosto amado debruçado sobre ti
N o estio deste lugar chamo por ti
Que hibernaste a própria vida como o animal
[na estação adversa
Que te quiseste distante como quem ante o quadro
[pra melhor ver recua
E quiseste a distância que sofreste
Chamo por ti - reúno os destroços as ruínas
[os pedaços
Porque o mundo estalou como pedreira
E no chão rolam capitéis e braços
Colunas divididas estilhaços
E da ânfora resta o espalhamento de cacos
Perante os quais os deuses se tornam estrangeiros
Porém aqui as deusas cor de trigo
Erguem a longa harpa dos seus dedos
E encantam o sol azul onde te invoco
Onde invoco a palavra impessoal da tua ausência
Pudesse o instante da festa romper o teu luto
Ó viúvo de ti mesmo
E que ser e estar coincidissem
No um da boda
Como
se o teu navio te esperasse em Thasos
Como se Penélope
Nos
seus quartos altos
Entre
seus cabelos te fiasse